domingo, 25 de julho de 2010

Estações da Vida III



OUTONO/OBLITERAÇÃO:

          Eu falei para mim mesmo: chega de sairmos só nós dois. Amava ficar com ela, mas eu estava extremamente orgulhoso da conquista, queria exibi-la para meus amigos. Resolvi, pois, fazer uma reunião na minha casa. Um encontro de adultos. Para os homens falarem das mulheres e as mulheres falarem dos homens.
          Comprei bastante aperitivos e pedi ajuda a Emily com as bebidas. Ela conhecia um barman, Apolo, de longa data. Só concordei porque ela afirmara que ele já tivera relações com mais homens – de uma só vez - que ela, em sua vida inteira.
          Convidei todos que eu conhecia e gostava e sugeri que Emily fizesse o mesmo. Acabou que aquela foi realmente um festa de arrasar. Enquanto limpávamos a bagunça, ela me contou as fofocas que ouvira das outras mulheres. Aparentemente, a maioria dos meus colegas vinha tendo problemas para comparecer na hora em que sua virilidade era mais requisitada.
          Por causa da festa, minha caixa de e-mail começou a ficar mais abarrotada de mensagens de meus amigos solteiros. Aparentemente, alguém espalhara o boato de que Emily era conhecida na empresa por ajudar as garotas solteiras - e desesperadas - a conseguir caras e os meus amigos queriam se candidatar.
          No dia primeiro de abril, estávamos assistindo ao Jornal Nacional, quando Lucas entrou correndo no quarto com a mão vermelha do que parecia sangue. Nunca vi Emily empalidecer tanto. Ela pulou da cama, apanhou a mão dele procurando o corte profundo que teria causado tal hemorragia e, não o achando, provou e viu que era catchup. Igualmente inédito era aquele tom roxo em seu rosto que precedeu uma bronca histórica. Quando ela finalmente conseguiu dormir, de tão nervosa que estava, eu aproveitei para ir ao quarto de Lucas e cumprimentá-lo pela perfeita atuação. Rimos até ele dar um longo e alto bocejo. Apaguei a luz e fui dormir também.
          Emily tinha um vício: chocolate. Ela amava qualquer tipo: doce, amargo, ao leite; não importava. Chegava, pois, a época em que eu teria que realmente me esforçar para impressioná-la. E eu não medi esforços. Já sabia que essa época seria importante, tinha um plano. Levei Emily e Lucas para a minha casa de praia na quinta feira da Semana Santa. Enquanto dormiam, no sábado, espalhei ovos de páscoa por toda a propriedade. Queria fazer uma saudável e alegre brincadeira no dia seguinte.
          Contei aos dois assim que acordaram no domingo e logo me duvidei se aquela fora a coisa sensata a fazer. O pobre Lucas parecia um filhote de poodle competindo contra um pastor alemão adulto que treinara por anos na polícia, os dois farejando à procura de drogas; no caso, chocolate. Mas, como eu falei, eu tinha tudo planejado. Comprara dois ovos de personagens da Marvel, que dei ao garoto. Emily, no entanto, teve que se contentar com apenas um ovo; mas de proporções gigantescas. Dentro do seu ovo tinha um pedaço de papel onde estavam escritas três palavras: “eu te amo”. Ela pegou, leu, chorou, disse que também me amava. A partir daí, tornamo-nos viciados em reafirmar nosso amor um pelo outro.
          No dia dezenove de abril, eu realmente comecei a me sentir parte da família de Emily, e não um mero namorado. Lucas chegou do colégio todo pintado de índio com uma enorme e chamativa pena na cabeça. Ao entrar pela porta, deixado pelo pai biológico, ele correu para dar um beijo na mãe e veio correndo logo após para falar comigo. Deu-me um forte abraço, perguntou-me se não parecia um verdadeiro índio. Eu fiquei brincando com ele. Emily o deu um banho de esfregão para tirar toda a tinta que puseram nele e depois nos reunimos os três na mesa de jantar.
          Como quase toda criança tão sabiamente faz, ele resolveu filosofar sobre a relação humana. Disse que sua professora comparara as cidades urbanas às tribos indígenas. Disse que cada um tinha um cacique, nas cidades, seria o prefeito. Então, ele perguntou se cada família não podia também ser comparada com uma tribo. E o pequeno garoto fez-me a brilhante pergunta que iluminou minha mente, mostrando-me o que eu realmente ansiava:
          - Então, você é o cacique dessa tribo?
          Não preciso nem dizer que a Emily quase morreu engasgada com o brócolis que comia. Recompôs-se a tempo de mandar seu filho comer o que estava no prato antes que esfriasse e parasse de ficar pensando em coisas grandes demais para uma criança da idade dele.
          Por mais que Lucas tenha sido quase obrigado a esquecer desse assunto, eu não fora - tampouco creio que seria possível. De repente, tudo estava claro em minha mente. O que eu mais queria, aquilo que eu teria - não importava a que custo - fazer era pedir Emily em casamento. Somente assim, eu me tranquilizaria.
          O que sobrou de abril se tornou um frenesi. Conversei muito com meus melhores amigos. Eles eram casados, sabiam o que me acometia. Após muita consideração com eles, resolvi que protelar ainda mais era me martirizar. Se eu não juntasse coragem para fazer isso, talvez nunca me perdoasse. E assim começaram os planos.
          Aliança. Minha amada não era metida nem esnobe. Mas se quisesse, poderia se mostrar para cima de todas as amigas com a aliança que eu comprei. Comprei pela internet. Mandei vir dos Estados Unidos direto para a casa de um amigo; na minha casa, eu corria o risco de ela ver. Tiffany's. O anel mais lindo que eu encontrei. Nem por um segundo me importei com o preço que custaria. Fazia o melhor e mais importante investimento de minha vida.
          Para o pedido precisei da ajuda de terceiros que se dispuseram a qualquer coisa e disseram estar realmente felizes e torcendo para que tudo desse certo.
          Dia doze de junho. Dia dos namorados. Ela já sabia que teria uma noite especial; só não tinha noção do quanto especial seria. Ela pensava que iríamos ao show da Sarah Brightman. Os ingressos eram para ótimos lugares. Jantaríamos em um restaurante na Barra da Tijuca e depois iríamos ao show lá perto.
          Após um jantar regado do melhor champanhe à venda e de comida de primeira, fomos ao show. O primeiro ato foi magnífico. Todo o custo financeiro daquela noite valeu a pena para que eu visse aquelas lágrimas brilhantes descerem as bochechas repuxadas em um alegre sorriso.
          No intervalo, demorei-me e Sarah Brightman começou a cantar “Fantasma da Ópera” enquanto eu estava fora. Emily me procurava por todo lado, mas não ousava sair do lugar. Ela consguir me localizar, mas eu estava no último lugar que ela pensaria: no palco. Enquanto Sarah cantava, alguém deveria aparecer vestido de Fantasma e ficar lá. Quando a música acabou, ela calou os aplausos ensurdecedores, começando um discurso:
          - Nessa magnífica peça de Andrew Lloyd Webber, o Fantasma declama seu amor por Christine com a música. Algumas pessoas não têm os mesmos dons musicais que ele. Mas isso não quer dizer que não se pode amar alguém tanto quanto - quiçá mais que - o personagem. Tenho aqui um amigo que queria falar algo para alguém especial. O nosso amigo mascarado me pediu para falar à sua amada algo. Emily, onde está você?
          Nessa hora, ouviu-se um grito agudo vindo da plateia. Todos começaram a seguir o holofote até que este encontrasse minha querida e estupefata amada. Ela parecia petrificada. Alguns empurrões das pessoas que a cercavam foram o bastante para tirá-la do transe. Ela acordou e subiu no palco.
          - Querida, - começou a dizer Sarah - primeiramente, devo parabenizá-la. Não é sempre que se vê um homem tão romântico que nem o seu. Mais difícil ainda é que ele seja hétero. HAHA E, mesmo se for hétero, é quase impossível que ele esteja solteiro e disposto a ter algo com você. Então, por isso, eu a parabenizo.
          “Agora, com a licença já dada da minha grande amiga Celine Dione, eu declamarei alguns dos versos de uma música sua que são para você.”

What do you say of taking chances?
[O que você diz de fazer tentativas?]
What do you say of jumping of the edge?
[O que diz de pular da beirada?]
Never knowing if there's solid ground below,
[Nunca saber se há chão abaixo,]
Or hand to hold, or hell to pay.
[Ou mão para segurar, ou castigo para pagar]
What do you say?
[O que você diz?]

          - Então, Emily? O que você diz de fazer tentativas. Por toda a vida do seu amado, ele nunca encontrou alguém como você. Ele sempre gostou de fazer os outros felizes. Mas você, pela primeira vez, conseguiu com que ele se fizesse feliz. Ele acha que sofrendo, magoará você. Você; mais ninguém. Que tal ter mais uma conquista na bagagem? Que tal ser a mulher da vida dele e isso ser oficializado? O que você diz de casar com ele? O que você diz?
          Nesse momento todos prorromperam em aplausos extremamente entusiasmados. Eu tirei minha máscara de fantasma e me aproximei dela. Ajoelhei-me perante Emily, tirei a joia - que quase cegava à luz dos holofotes - e perguntei “Casa comigo?”
          O que veio a seguir é a razão para a definição dessa estação. Tudo estava indo bem demais para algo apelidado de obliteração. Ela disse não e saiu correndo. Se um dia eu sonhei imaginar o que era dor, estava irrevogavelmente errado. Naquele momento eu conseguia respirar tal qual um peixe na superfície. Meu mundo rodou, rodou, rodou. E eu dormi.
          Quando acordei já não era mais outono.

2 comentários:

Dani Scoralick disse...

:O
Vai começar o inverno...

Eduardo Mercadante disse...

Já começou. Ele começa e a gente nem repara, até que a névoa obstrui a nossa visão e gritamos perdidos.