VERÃO – PARTE UM/ SUFOCO:
Calor. Não consigo passar alguns poucos minutos sem a ajuda de um ventilador, ar condicionado ou algo do gênero. Sinto-me uma bola de sorvete tentando resistir bravamente no calçadão de Copacabana, onde caiu da casquinha de uma criança. Uma aparente obsessão por banhos me domina. Junto a ela, acho que um surto psicótico também começa a agir sobre mim. Torno-me instável, mais até que uma grávida.
Começo o ano lendo. Devoro páginas como se curasse uma inanição. Não sabia – à época – o porquê de amar tanto os livros. Férias: tempo ocioso. Algo tenho que fazer para não pirar de vez. E cheguei bem perto de perder o controle.
Um fator surgiu para domar meus hormônios e calmar minha mente, focá-la em algo. O cenário: teatro, um musical sobre uma família austríaca era apresentado. Sempre amei teatro musical, mas quase nunca ia. Eu tinha – ainda devo ter – um enorme defeito: chegava uma hora, durante a apresentação em que não conseguia mais me segurar e começava a cantar as músicas junto dos atores. Naquela apresentação, porém, não fui o único. O tenor sobre o palco e o barítono sentado na minha poltrona eram acompanhados por uma soprano muito delicada. Aquela voz soou-me tão familiar, tão de acordo com cada parte do meu ser, que eu tentei me lembrar se essa era a primeira vez que a ouvia, ou se já nos conhecíamos havia anos.
No intervalo, ao me sentar, por acaso – ou não –, ao seu lado na cafeteria, perguntei-lhe seu nome. Emily. Tomamos umas taças de xerez e tivemos uma breve conversa sobre o quanto achávamos ótimo que as pessoas parassem uma noite de suas vidas para apreciar algo tão belo quanto aquilo que víamos. De volta às poltronas, a atenção de cada um destes dois expectadores deslocou-se do palco para o outro. Inevitavelmente, acabamos indo a um bar à beira da praia para uma conversa amigável, regada no óleo das batatas fritas, Coca-Colas, cervejas e na fumaça dos cigarros.
Fomos nos conhecendo melhor. Ela insistia em dizer que tinha vinte e sete anos, mesmo eu jurando que ela parecia ter cara de dezessete, fazendo-a corar e sorrir de uma maneira que fazia meu coração perder o compasso. Trabalhava com publicidade. Adorava Sarah Brightman, Harry Potter e Crepúsculo. Eclética, não?
Jogamos conversa fora até o sol começar a sair e o garçom nos avisar que a cerveja acabara. Pagamos – paguei – a conta e a chamei para uma caminhada na areia. Ela concordou e pediu para que eu esperasse enquanto tirava os saltos. Pedi-lhe que sentasse. Ajoelhei-me perante a dama e gentilmente desamarrei o salto que estava no seu pé esquerdo. Tomei um risco e fiz uma massagem de leve em seu pé, algo que aprender em um curso-relâmpago de reflexologia pela internet. Ela pareceu gostar. Sorriu e corou daquela maneira à qual eu começava a me sentir viciado.
Passei para o outro pé. Ao retirar o calçado, notei que havia uma pigmentação estranha no canto lateral. “Lucas” estava escrito. Delicadamente, passei a mão pelo nome, simplesmente para comprovar o que temia: era uma tatuagem verdadeira. Ela notou minha hesitação, trocando o foco de sua visão do sol nascente para mim.
- Ah! Então você já achou isso.
- Er, sim. - eu tentei aparentar o mais alheio possível ao homem que fora homenageado por ela - É... Emily... por acaso há algo que você se esqueceu de mencionar...?
- É, receio que haja algo. Como você é um cara legal, acho que merece saber toda a verdade. Sim, há outro homem na minha vida.
É nesse ponto que começa o verdadeiro sufoco do verão. Como sempre vivi no Rio, estou acostumado ao calor escaldante. Mas meu queixo estava caído. Eu suava como um porco usando poncho. Mal conseguia respirar. De repente, comecei a sentir uma dor – com a qual estaria familiarizado no futuro – no peito. Pensei que fosse falta de oxigênio e excesso de gás carbônico nos meus pulmões. Mas a dor não vinha deles: era entre os dois.
- É, ok. Momento meio sem graça. Hehe – aqui se passam, aproximadamente, os dois minutos mais longos da minha vida nos últimos anos – Então... Quem é Lucas? Vocês são – essa palavra, em especial, custou-me um pedaço do meu pâncreas – namorados? Digo isso porque você não tem aliança. Então... Quem é Lucas?
Aqui a minha consciência se transforma em uma roleta. Tudo perde mais uma vez o sentido. Parece que estou novamente vendo os fogos. Contudo, dessa vez há um som de fundo; ouço risadas. Emily está rindo. Melhor dizendo, gargalhando.
Eu olho para ela com a minha perfeitamente autêntica cara de desentendido. – O que foi?
- Seu bobo. Não. Lucas não é meu namorado. Nunca foi.
- Ah! Então, seu pai?
- Não.
- Por favor, diz que é seu melhor amigo gay.
- HAHA Não. Também não. Quer parar de tentar adivinhar? Daqui a pouco vai achar que eu tatuei no meu pé o nome do meu açougueiro.
- Desisto. Hehe Quem é Lucas?
- Lucas é um lindo garoto de sete anos.
- Agora só estou mais confuso. Irmão?
- Você não tinha parado de tentar adivinhar? Hehe... Lucas é meu filho.
- Sério? Fruto do seu ventre? – e que seja lida nessa frase uma cara de paisagem enorme.
- Nossa! O nome dele é Lucas, não Jesus! E sim, meu filho. Eu não falei antes porque esse é o tipo de coisa que afasta todo cara. O pai... nunca realmente gostei dele o bastante para casar. Mas ele me deu o maior presente de todos e, por isso, nunca poderei o agradecer o suficiente.
- Emily. Vamos caminhar.
- Você não vai sair correndo?
- Vamos caminhar.
Descemos para a areia. Começamos a descer para a água. Como estávamos vestidos para teatro – e éramos dois dos poucos que ainda se vestiam bem para tais ocasiões – optamos por simplesmente caminhar descalços e não molharmos nada mais que os pés.
Após alguns minutos escolhendo bem as palavras que queria usar, eu finalmente disse:
- Eu também não fui completamente honesto com você. Emily, eu sou infértil. É quase impossível que eu venha a ter filhos biológicos, então sou considerado infértil. E sabe, eu realmente queria investir em você. Cansei de vadiar nas noites boêmias da Lapa. Quero ter uma vida mais estável, ser mais caseiro. E, agora, sabendo que você já tem um filho de sete anos, conforto-me. Mas você ainda quer ter filhos?
- Meu, falando a verdade, o Lucas basta. HAHA
- Eu imagino como deve ser. HAHA
Nós ficamos caminhando silenciosamente, com raios dourados surgindo no horizonte, uma brisa soprando em nossos cabelos e a música dos mares soando em nossos ouvidos.
Acabou que aquilo não foi mais um caso. A coisa realmente evoluiu. Praia de manhã. Parque à tarde. Cinema à noite. Frequentamos quase todos os restaurantes italianos de toda a orla de Copacabana. Curtimo-nos.
Janeiro passou. Fevereiro chegou com os compromissos. Ela tinha a escola do filho e o trabalho para manterem-na ocupada. Eu não tinha as preocupações de outra pessoa para me atrapalhar; só as minhas já eram o suficiente.
A mãe dela veio para o Carnaval. Disse que queria passar o feriado com o neto, pois havia muito tempo que não o via. Aproveitamos e viajamos para a serra. A região dos lagos estaria insuportavelmente cheia nesse época; inabitável. E, como nós dois amávamos frio, eu pedi emprestada a casa de um amigo em Itaipava e lá fomos nós para um final de semana que prometia.
Chegamos, no carro dela, por volta das seis da tarde. Não tivemos que fazer limpeza alguma, já que havia uma mulher que o fazia regularmente. Acomodamo-nos na suíte no segundo andar. Almoçamos muito cedo com a mãe e o filho dela naquele dia; tínhamos, pois, fome. Eu a prometi que, pelo menos naqueles dois dias, ela se sentiria uma rainha e que, para tal, não faria nenhuma tarefa que a cansasse.
Peguei alguns vegetais e fiz uma leve salada. Fiz um elegante prato de massa e levei tudo para a mesa de jantar. Acendi algumas velas, coloquei um vinho tinto suave de mesa para mim e para ela e um pouquinho de Barry White – que nunca faz mal a ninguém – ficou responsável por ditar o clima.
Quando ela saiu do banho, vestia um robe de seda. Ao ver a mesa, riu e perguntou se teria tempo de pôr um vestido longo antes que o rei chegasse. Eu respondi que ela era perfeita, não importava o que vestisse, e que ela era toda a realeza daquele recinto. Sentamos e comemos. Quando saciados, subimos ao mezanino e nos deitamos no sofá para assistir a um filme que amávamos: “Dança comigo”. Lá pela metade, eu a convidei para dançar. Embalamos um dois pra lá, dois pra cá completamente fora do ritmo da música que tocava. Os créditos já haviam até acabado, e lá estávamos nós. Agora, prendíamos a nós mesmo em um abraço apertado, enquanto nos balançávamos pelo cômodo.
O dia seguinte foi regido por um lema: relaxamento. Acordamos, ficamos um tempo inimaginavelmente prazeroso nos mirando nos olhos sem falar nada. Tomamos um leve café da manhã e fomos à piscina. Mergulhamos até nos cansarmos e depois ficamos dourando sob o sol. Aproveitei para pôr em prática outra técnica de massagem que aprendi: drenagem linfática. Usando um óleo que eu sabia que ela amava, tentei ao máximo torná-la leve o bastante para voar como uma pena ao vento.
Não tivemos fome na hora do almoço, então passamos um bom tempo na sauna conversando sobre livros, outra paixão mútua. Quando já era umas quatro da tarde, subimos para a suíte. Tomamos um banho de sais na hidromassagem.
À noite, fez frio. Como não comêramos no almoço, resolvemos fazer um fondue. Levamos o jogo todo para o quarto e comemos na cama, abraçados sob um grosso edredom. Gostoso.
No domingo, passeamos pelo centro de Itaipava, por Petrópolis e vários outros lugares ali perto. Voltamos para o Rio na segunda pela manhã.
Fevereiro terminou. Março tampouco foi longo, ou marcante. Lógico; eu nunca esqueceria cada um dos felizes segundos que passei ao lado dela, mas nenhum evento em especial ocorreu.
Eu mergulhei de cabeça naquele relacionamento. A cada momento eu tentava o meu melhor para fazer com que aquilo desse certo. E, de alguma forma, sentia a mesma coisa da parte dela.
Eu, que pensava que encontrara minha saída do sufoco nela, encontrei uma nova razão para pânico. Não seria mais só a falta de ar; agora seria uma total e completa obliteração.